Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo
Acha-se Göliver depois de seu naufragio deitado em huma cama de penas; levanta-se, fica vestido com ellas: he levado ao palacio de Crates Mallotes: falla-se em a decadencia das Letras: estabelece Teive tres causas de pedantaria geral: nomeia Crates para cada huma seu relator, &c. TInha amanhecido o dia 27 de Dezembro de 1799, passados jÞ quasi 23 annos, que havia sahido dos patrios lares, e para onde vinha navegando: seriam tres da tarde, quando se levantou pelo Sul huma nuvem pardacenta,{10} que em breve espaäo vestio o Ceo de negro, e logo o vento entrou a dar horrendos berros, os quaes converteram os mares em elevadissimas montanhas, cujas fraldas eram medonhas cavernas: ferviam os alaridos; mas a fervura pouco durou; porque a tempestade correu veloz, fez em migalhas toda a mastreaäañ, o mar de Arcadia engolio o casco do navio, e sepultou em suas malvadas entranhas os meus amados companheiros. Eu andei abraäado com hum pedaäo de mastro, dois dias, segundo penso, feito boia; no fim dos quaes cheguei quasi defuncto Þquella parte da ilha dos Mortos, que os Grammaticos habitam. Nañ sei dizer como ahi apportei; porque sï me lembro de resuscitar no meio dos Grammaticos, que jÞ morreram, cuja caridade, e benevolencia vou apregoar para confusañ dos ingratos de que o mundo estÞ cheio. He pois o caso: mal hia eu abrindo os amortecidos olhos, senañ quando vejo Sanches todo arregaäado a applicar-me varios remedios, e ninguem dizia nada, eu tambem{11} fiquei callado; poræm nada me escapou: porque reparei me haviam deitado em hum leito de negro evano, enterrado em plumas de aves desconhecidas, no meio de hum portico de soberbas columnas, o qual servia de fachada a hum palacio tañ magnifico, que bem conheci nañ ser feito por braäo mortal, cujas obras pelos erros, e defeitos, logo se dañ a conhecer. Assim estava medindo com os meus botñes o edificio dos mïrtos, quando Sanches observando hum e outro pulso, disse: Desta estÞs äafo. Eu poræm, que nañ estava acostumado a ouvir fallar defunctos, metti a viola no sacco. Mas o Francez Despauterio, como quem quiz mostrar o pique da sua naäañ contra a Hespanhola, disse com hum rizo Sardonico, muito gosto, Sanches, de vos vçr de Grammatico feito Medico. JÞ no mundo (tornou o sabio Brocense em hum tom, que me regalou) fui o Medico, que curou as doenäas literarias do teu paiz: o meu nome lÞ anda na boca{12} dos eruditos; o teu na dos pedantes. Entañ Despauterio ficou de queixo cahido: todo o congresso bateu as palmas, e carregou de vivas o Principe dos Grammaticos, e eu animado com a galhofa agradeci-lhe muito a caridade com que me tratou: e fiquei desde entañ senhor de mim de tal feiäañ, que me parecia, jÞ nañ ser homem de Inglaterra: de maneira que sem ceremonia nenhuma saltei pela cama fïra; mas quanto nañ fiquei maravilhado, quando me vi vestido das mesmas pennas, em que, pouco havia, estive deitado! Fiquei pois com huma beca, como de Desembargador, e nañ cessava de me mirar, assim como fazem os casquilhos no meio das ruas; poræm he certo que eu nañ obrava assim por asneira, como elles. Toda a minha admiraäañ era ver hum vestido feito por si mesmo sem tezoura, nem agulha de alfaiate. Antonio Nebrixa conheceu o meu espanto, e disse: Aqui nañ admittimos homens, que fazem officio de mulher, e subministram ao luxo mundano{13} o ultimo refinamento, ajudando os teares da tua naäañ a esgotar quanto dinheiro as outras tem. Fiquei envergonhado, e elle conhecendo o meu pejo, virou-se para a turba, e disse: Aonde estÞ Linacro, que nañ vem dar as boas vindas ao seu compatriota?