“ Eu pensava em Michia que, uma semana mais tarde, abandonaria Roma em direção a Jerusalém onde decidiria ficar para sempre. Podia deter-me aqui, e contar-vos como tudo aconteceu. Como fora, ele próprio, abatido por essa bomba de Haifa, como a perda da mulher que amava foi um golpe traiçoeiro dessa guerra suja, que não era sua, como o mal teve braço longo para o desarraigar de Roma e o enterrar em Jerusalém, onde passou então a viver, acabando por se reconverter em assassino profissional e integrar as células clandestinas dos serviços secretos israelitas. Podia contar-vos esse resto de dia, até ao mais ínfimo detalhe. O olhar de Michia sem olhos, as mãos desarticuladas sem a suspensão dos braços, os lábios colados sem traço de desespero, a porta do seu quarto a proibir a transgressão do silêncio, as janelas com os estores corridos. Mas, nesse dia, à saída do cabeleireiro, havia um homem a olhar para mim. Segurava debaixo do braço uma sebenta com esboços a lápis, e um cigarro entre os dedos que levava repetidamente aos lábios, até ter coragem de me pedir lume. Acendi-lhe o cigarro, que ficou descaído no canto da boca fumegando palavras, primeiro incoerentes, depois ordenadas por gestos nervosos à medida que expunha ideias e planos sobre a construção de jardins suspensos nas cidades.” Pág 101
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