"O sino das ave-marias ou da oração, tinha dado na torre da Sé a última badalada, e pelas frestas e portas dessa multidão de casas que, apinhadas à roda do castelo e como enfeixadas e comprimidas pela apertada cinta das muralhas primitivas de Lisboa, pareciam mal caberem nelas, viam-se fulgurar, aqui e acolá, as luzes interiores, enquanto as ruas, tortuosas e imundas, jaziam como baralhadas e confusas sob o manto das trevas. Era chegada a hora dos terrores; porque durante a noite, naqueles boas tempos, a estreita senda de bosque deserto não era mais triste, temerosa e arriscada do que a própria Rua Nova, a mais opulenta e formosa da capital. O que, porém, havia aí desacostumado e estranho eram o completo silêncio e a escuridão profunda em que jazia sepultado o Paço de a par S. Martinho, onde então residia el-rei D. Fernando, ao mesmo tempo que pelos becos e encruzilhadas soava um tropear de passadas, um sussurro de vozes vagas, que indicavam terem sido agitadas as ondas populares pelo vento de Deus e que ainda esse mar revolto não tinha inteiramente caído na calmaria e sonolência que vem após a procela."